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Sobre hábitos e valores - ou a indissociação entre quem somos e quem queremos ser

Já há alguns anos decidi, bem decidido, que meu bem-estar e minha saúde assumiriam o posto de prioridade absoluta na balança da minha vida. Ações que venham contra essa decisão definem, indubitavelmente, a maioria das poucas coisas que me irritam. Venham de onde ou de quem vierem, inclusive de mim mesma.
O problema é que bem-estar e saúde implicam, vez ou outra, em sentimentos ilógicos, até mesmo contraditórios, o que é perfeitamente compreensível e justificável se considerarmos a complexidade do ser humano, bicho de cabeça, corpo e alma, razão, ação e emoção, cheio de sutilezas, enfim. Explico: se sou intolerante à lactose, é natural que uma refeição saudável para mim deve ser livre de leite e derivados; se estou em um jantar com meus entes queridos e o menu inclui uma lasanha cheia de queijo, meu bem-estar pede uma certa flexibilidade digestiva pra contemplar a companhia e compartilhar a refeição sagrada.
Ouvi dizer outro dia que ser feliz dá trabalho. De fato, dá um certo trabalho traçar o caminho do meio. Envolve observar as rotas e suas regras, o conhecido e seguro, e ter discernimento pra ligar tudo isso à nossa própria verdade e aos nossos próprios limites pra escrever nosso próprio mapa.
Escrever o próprio mapa é desafio constante e sem fim. Ao olhar no espelho e perguntar, olho no olho, o que se quer, a resposta deve vir ponderada menos pelo desejo e mais pelos valores que se têm. O "quem você é" é consequência do "quem você quer ser", no sentido de que nossos hábitos nascem dos nossos valores. No sentido inverso, a mesma dependência é válida: hábitos que se prolongam acabam construindo valores, mas acredito que desse lado a transição ocorre mais lentamente. Incoerências em qualquer dos dois caminhos são traduzidas em crises, que nos levam a questionar qual dos lados tem razão, ou, mais uma vez, se há um caminho do meio.

We're all mad here
Meus hábitos me definem, mais do que meus valores, porque são o que existe, de fato. Meus valores me guiam, e me lembram quem eu quero ser. Mas não são concretos, não mudam o mundo, não mudam minha vida. Isso cabe aos hábitos.
Saúde e bem-estar resumem, portanto, os valores que mais prezo. Deles procuro cultivar meus hábitos: preparar e comer comida saborosa e natural; praticar yoga, corrida, natação; desligar a cabeça do trabalho quando saio do trabalho; manter a TV desligada; ler sobre o que me agrada; escrever; dormir a noite toda e acordar quando começa o dia; praticar o amor, transitivo e intransitivo; cuidar da minha própria casa; assumir a responsabilidade sobre a minha, e só a minha, vida; terapia; consumir parcimoniosamente; ser flexível; ouvir música calma e positiva; manter uma independência possível; amar (já disse isso?). Nem sempre tudo, nem sempre sempre. Mas continuamente, sinceramente, incansavelmente.
Ser feliz dá trabalho, mas é o tipo de trabalho que acalenta a alma.

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