Pular para o conteúdo principal

Oito de março de dois mil e vinte e um, nove da noite. Você finalmente se senta e pensa em escrever alguma coisa interessante.

O dia foi ótimo. Você acordou às seis e meia (normalmente sua filha te chama antes das seis) depois de ter ido dormir por volta das onze. Teve uma interrupção na madrugada, nada demais. Ela te chamou, você foi lá, ela te abraçou e logo voltou a dormir. Você também não teve muita dificuldade pra dormir depois de voltar pra sua cama.

Sua filha levou quase uma hora até escolher uma roupa que a deixasse satisfeita. Ela está na fase em que as roupas ganharam um significado, e não servem mais apenas pra cobrir o corpo. Uma hora ela quer vestir saia de tule e collant (isso veio depois que você e ela se fantasiaram e dançaram a tarde toda no quintal pra curtir o Carnaval cancelado pela pandemia), mais tarde é a roupa do Simon (o coelho do desenho), e às vezes no mesmo dia são cinco papéis (o que dá cinco roupas também) diferentes que ela interpreta (junto com você, a quem ela também impõe algum personagem pra atuar com ela). 

O café foi tranquilo. Você fez suco de mamão com laranja, queijo branco grelhado, pão caseiro que vocês fizeram juntas no dia anterior, manteiga, geleia de pera caseira. Enquanto fazia o suco, você ouviu uma mãe responder a uma jornalista no podcast que não tinha recursos pra oferecer uma alimentação adequada pros seus filhos pequenos, muitas vezes restritos a uma dieta baseada em farinha e açúcar, e esse depoimento permaneceu latente nos seus pensamentos durante o café. Ao olhar para a mesa bem servida e a expressão de satisfação e alegria da sua filha, você sentiu um misto de culpa, gratidão e medo, porque reconhece seus privilégios e porque sabe que a mesa só é farta hoje porque você ainda consegue vender sua força de trabalho em um emprego que você está prestes a abandonar, mesmo sem ter perspectiva de outra fonte de renda, e que, portanto, não tem a menor garantia de que a mesa continuará farta no futuro próximo.

Você está prestes a abandonar o emprego e pensa nisso todo santo dia. Faz contas toda noite antes de dormir. Olha para a planilha, pesquisa preços nos aplicativos dos supermercados e casas para locação nos sites das imobiliárias. Tenta espremer as contas, mas a inflação e a especulação imobiliária não ajudam. 

E é por isso que você se senta às nove da noite, depois de fazer e servir o café da manhã, o almoço , o café da tarde e o jantar, passear com o cachorro desviando das pessoas que insistem em não usar máscara, lavar a louça, a roupa, limpar, guardar, arrumar, escovar os dentes dela, ler pra ela, brincar com ela, dar banho nela. E então você tenta escrever um pouco.

De manhã seu marido teve uma entrevista de emprego. Você, que sempre se orgulhou da sua independência financeira, está torcendo pra que ele consiga um bom emprego, capaz de pagar os boletos, pra que você possa respirar um pouco. Você ficou lendo "O diário de um louco" do Gogol enquanto ela via desenho pra garantir silêncio durante a entrevista. Seu dia foi passando e aquela sessão de yoga que você começou antes do passeio não teve continuidade. Você já não cria mais expectativas em relação a isso. Tudo fica pra quando der.

E aqui você está. Há seis anos você tenta trabalhar com a área pela qual se apaixonou, e já buscou diversos caminhos pra isso, mas parece que nenhum deu em nada. Você não quer desistir, até porque seu futuro profissional depende de que algum caminho te leve a algum lugar de produtividade, mas já são seis anos. Você começa a duvidar. E não parece que agora seja um bom momento pra isso. São nove da noite e você já está cansada. Mais de 250 mil histórias de vida foram encerradas precocemente só no seu país, por causa de uma pandemia da qual o governo não está disposto a proteger ninguém. Você está confinada em casa há um ano. Você tem tão pouco tempo antes de dormir que hesita sem saber por onde começar. E você acaba decidindo começar por aqui, e pra tentar organizar os pensamentos rabisca essas palavras. 

Você se pergunta como as outras mães que estão em homeoffice conseguem. Mas você sabe que elas não conseguem. Assim como você, que ficou dois semestres tentando dar aula online, não conseguiu. Vocês estão no mesmo barco. Só que você, agora de férias, às vezes consegue passar um ou dois dias sem sentir aquela angústia típica das mulheres em jornada contínua. São dias em que você cria menos expectativas e mais esperança.

E aqui está você. E é isso que você conseguiu escrever. Nada de artigo científico, nenhuma obra literária digna de prêmio. Mas um dia você provavelmente vai ler esse pequeno relato e vai se perdoar, vai abraçar essa sua versão do passado como se abraçasse uma boa e velha amiga. E vai saber que fez o melhor que estava ao seu alcance.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os fracassos da vida

Fracassei. Na última postagem, eu falava da venda do carro e do mergulho na bicicleta. Não consegui vender o carro, não tive coragem de encarar o trânsito de bicicleta. Fracassei, como em outras coisas na vida. O carro continua lá, contra a minha vontade, e também não tive força de vontade pra insistir, procurar uma revendedora, colar um "vende-se" no vidro traseiro.  Acabei usando umas vezes mais, por conveniência, ou simplesmente pra justificar o fato de mantê-lo na garagem, ou pra não deixá-lo morrer de vez. E o resto fiz a pé, de ônibus ou de carona. Resumindo: o discurso não deu na prática. O grande problema não é o fracasso em si, mas como a gente lida com ele. Lá no fundo, fico muito incomodada em manter o carro na garagem. Tomar uma decisão e não conseguir cumpri-la gera um sentimento de frustração constante, que lateja. Vale pra tudo. E nos últimos meses, tudo tem sido bastante coisa. Tempos de crises. No plural mesmo. Crises globais - a econômica, a polític...

Variações do mesmo dilema

Te beijo a nuca sempre que te vejo E nunca sei se paro ali ou começo de novo Do começo que foi seu queixo Mas aí sua boca me chama  E eu lembro o quanto me faz feliz  Quando ela fala Porque ela fala todas as palavras Que eu sempre quis ouvir E se abre num sorriso Que chama a minha nuca pra dentro dos seus lábios E é então que recomeçamos Pra dar à paixão Uns goles de amor Que às vezes de tanto  Transborda pelo copo e confere ao corpo A impressão de ser alma E de ser uma só Porque é a minha que não quer mais Viver sem a sua.

Sobre duas rodas (ou nenhuma)

Prestes a me livrar do meu carro, comprado em infinitas prestações de um valor que eu não podia pagar, porque julguei necessário em um determinado momento da minha vida pra atender às pressões do mundo que anda a 100 km/h. Por quatro anos usufruí do (suposto) direito de ir e vir que o carro proporciona. 50 mil quilômetros rodados. Feliz da vida, vendo o pretinho básico, como costumava chamá-lo, por cerca de 40% do valor que paguei. Números que não significam mais nada pra mim. Há dois anos comprei uma bicicleta e venho experimentando em doses homeopáticas o aparente desafio de viver sem ter um carro na garagem à disposição 24 horas por dia. Você perde algumas coisas: não dá pra ir ao supermercado preferido sempre, não dá pra viajar pra qualquer lugar a qualquer hora. Você ganha muitas coisas: o prazer de voar, nem que seja só aos domingos, sobre as duas rodas da magrela; as horas de leitura e descanso entre uma cidade e outra sem precisar dirigir; uma dose extra de saúde, bom humor ...