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Aos sóbrios

Finalmente enxergava: não era o que havia planejado ser. Sua vida havia seguido outro caminho, ou talvez o caminho de outro. Não se sentia arrependido, nem pensava em desistir. Jogar tudo pro alto e escrever outra história não era sequer uma opção. Nunca fora mesmo chegado a obviedades.
Eis que o vozeirão de Cássio o trouxe de volta, aquilo era “um absurdo, você não acha?”. Respondeu com o dar de ombros habitual, seguido de um sorrisinho simpático e um gole do café sonso de sempre. Nem sabia mesmo qual o assunto. Olhou o relógio – preto, discreto, combinava com o cinto e o sapato, colocou o dinheiro sobre a mesa e notou a taxa de serviço, adivinhando a causa da indignação do amigo. Nunca se importou em pagar os tais 10%, e na verdade não era do tipo que se importava com as coisas. E o resto das pessoas viciara-se em criar caso. A vida em sociedade sempre o fascinara.
Ainda digerindo os pensamentos do almoço, sentou-se na cadeira ergonômica – cinza, combinava com a cortina – que Érica o havia convencido a comprar quando reclamou de uma dorzinha na coluna, porque “a lesão por esforço repetitivo atinge sei lá quantos por cento dos advogados, você sabia?”. Visualizou o cenário: a sala de decoração sóbria, a pilha de processos sobre a mesa, os livros na estante, recheados de leis, interpretações de leis, datavênias, outrossins e toda arte de retórica típica do Direito. O discreto porta-retrato. A Mont-Blanc presenteada pelo tio orgulhoso havia duas semanas, na festa-surpresa em comemoração ao decanato na profissão. Os carimbos, clipes e todo o arsenal que compunha a imagem do respeitado advogado que se tornara. Não o surpreendia o fato de haver construído tão brilhantemente uma carreira que não era sua. Aprendera com a mãe a cumprir com maestria tudo que assumisse. “Se vai fazer, faça melhor do que qualquer outro faria.” Estava surpreso, sim, com esse sentimento inesperado de inadequação. Um sujeito que sempre se orgulhou de sua capacidade de adaptação não podia de repente se sentir deslocado.
Enfim teria que admitir a sua mediocridade. Vivia como todos nós em uma sociedade patética e, como todos nós, já havia moldado e vestido sua máscara, o escudo por trás do qual exercitava sua hipocrisia com todo o desprazer.
O telefone já tocava incessantemente quando ele atendeu sem responder e riu quase involuntariamente por já saber quem era e prever cada palavra que viria do outro lado da linha, como num déjà vu ou num eco que ressoa e nos faz ter a sensação de estar acima do tempo. Ou neste caso talvez mais como num filme a que se assiste pela segunda vez e por isso se perde o prazer da novidade. Mas para Érica o riso soou como uma manifestação de alegria por ouvir sua voz. E por que não seria? Era afinal de contas a voz doce e aveludada pela qual se apaixonara.
Lembrou-se de quando não conseguia passar um dia sequer sem o despertar de uma nova paixão. Quase todo mundo provavelmente passa por uma fase assim. Podia ser um filme, uma música, uma poesia, uma pessoa. De repente sentia o coração acelerar e todo o resto do mundo desacelerar. Era volúvel; volúvel e absurdamente feliz. E nem fazia tanto tempo assim...
Mas a paixão pela voz dela havia definhado como as outras. Exatamente como eles o haviam prevenido. E aos poucos foi se tornando um deles. Um racional. Mas subitamente uma satisfação por perceber tudo isso agora que ainda tinha tanto tempo pela frente lhe trouxe uma inesperada ternura, e foi amável com ela, sinceramente amável. Desligou o telefone e recostou-se confortavelmente na cadeira velha, que agora acomodava os clientes. Aquela que fazia mal à coluna. E sentiu um prazer imensurável. A sensação de liberdade lhe penetrava pelos poros, pelo simples fato de poder escolher em qual cadeira se sentar. A vista daquele ângulo também era muito mais agradável. Cada objeto e cada móvel da sala ficava ofuscado diante do ipê amarelo altivo por trás da janela. A porta de cor sóbria que ficava no lado oposto era sua paisagem habitual. Agora entendia por que passara a usar óculos...
Dali em diante o dia correu como de costume. Com algumas sutis diferenças. Guardou os óculos na gaveta e decidiu nunca mais usá-los, mesmo que não conseguisse enxergar quase nada. Durante a reunião das 14h30 fingiu tomar nota do monólogo do empresário viciado em sonegação e suborno – que com tantos processos praticamente sustentava o escritório de advocacia – enquanto fazia uma lista das cores que conhecia. Estava tudo meio embaçado e a letra deve ter ficado quase ininteligível, mas isso não tem a menor importância.
Na fila do banco viu aquele tênis muito amarelo nos pés de um cara com cara de motoboy, e o convenceu a trocá-lo por seu sapato. E ao fim do dia já tinha riscado quase metade da lista. E naquela noite foi jantar com Érica – ela não entendeu nada – usando os tênis amarelos e o relógio vermelho. 

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